Jether Garotti Jr.: de acompanhador a maestro arranjador


JETHER E ZIZI POSSIPianista, tecladista, clarinetista, vocalista, soundesigner, arranjador, orquestrador, produtor musical e compositor de trilhas sonoras: esse é Jether Garotti Jr., graduado em clarinete erudito pela Escola de Comunicações e Artes /USP e mestrado em música popular brasileira pela UNICAMP. Se não bastassem tantos títulos, Garotti tem em seu portfólio a parceria de 24 anos com a cantora Zizi Possi, de quem é maestro arranjador e participou de 10 álbuns, incluindo os cultuados Per Amore, Pra Inglês ver….e ouvir e Puro Prazer

Criador e diretor musical de trilhas sonoras para dança, teatro, musicais – como Emoções Baratas e Mucho Corazon – e filmes publicitários para TV e rádio, participou como instrumentista, arranjador e assistente de direção musical em projetos com Milton Nascimento, Nana Vasconcelos, Toquinho, Jane Duboc, João Bosco, Alcione, Ivan Lins, Edu Lobo, Ana Carolina, Luiza Possi, Fafá de Belem, Eduardo Dusek, Elizete Cardoso, Ney Matogrosso, Gonzaguinha, Flávio Venturini, Leila Pinheiro, Paula Lima, Rosa Maria, Dominguinhos, Paulinho da Viola, Toninho Ferragutti, Paulo Moska, Moraes Moreira, Cadu de Andade e Luzia Dvorek, entre outros. Paralelamente, é arranjador residente da Orquestra Sinfônica de Heliópolis, que conta com direção artística do maestro Isaak Karabtchevsky e é  administrada pelo Instituto Baccarelli.

IMG_9213Como foi sua formação musical?
Comecei com o piano, por uma questão quase psicológica. Tinha seis anos de idade e era o garoto mais alto e mais gordinho, da turma mas muito tímido. Aí a molecada partia pra cima, brincava e, por vezes, eu batia, mordia. Para a psicóloga da escola eu tinha algum problema: “está machucando as crianças. Vamos fazer um estudo psicológico porque provavelmente ele vai precisar ir para a classe especial”. A sala especial tinha pessoas com síndrome de Down, deficiências etc. Eu estava quase indo para lá. Antes que eu fosse, uma professora de música olhou pra mim e disse que queria tentar uma última coisa. Me colocou na frente do piano, começou a ver posição de mão, pediu licença a todos, fechou a porta e foi se ambientando comigo, sentindo como eu respondia aos estímulos. Depois, abriu a porta e deu seu veredito: “esse menino não tem nada. Deixem ele comigo que vou cuidar dele”. E foi assim que conheci Sophia Helena Freitas Guimarães de Oliveira, uma grande professora que fazia trabalhos que, até hoje, fazem parte da memória de todos  que passaram por ela, os que seguiram como músicos e os que não seguiram, e que fez com que nós aprendêssemos música de forma não didática, mas com o coração. Ela colocava peças difíceis, aprimorava a interpretação, os fraseados, desde os seis ou sete anos. Dois anos depois, eu já estava tocando piano, violão e flauta-doce e desenvolvendo todos os primeiros passos musicais, a teoria musical, valores, solfejo. Em 1979, entrei no conjunto de flautas-doce Guiomar Novaes, que ela administrava. Éramos quase 30 flautas e, em 1981, ganhamos o prêmio da APCA de melhor grupo instrumental erudito do ano. Foi praticamente ali que começou minha carreira profissional, aos 13 anos, quando recebi meu primeiro cachê.

Conhecendo flauta-doce, violão e piano você já pôde ter uma boa ideia do universo que poderia usar em arranjo…
Sim. Porque, quando você lida com instrumentos melódicos e harmônicos, você percebe o foco de cada um e o que ele precisa ouvir do outro, ou seja: o que eu, como instrumento harmônico, preciso prestar atenção no que o melódico faz, e descobrir como dar suporte, como dar o melhor embasamento harmônico para que ele faça a parte dele com segurança. E, como instrumento melódico, o que precisa do instrumento harmônico, onde o que ele está fazendo se encaixa na harmonia que o outro está apresentando. É uma via de duas mãos. E, se você entender isso, sabe qual a necessidade e a importância de cada um no contexto.

jg-fotooficial (1)Ela lhe deu todo o embasamento técnico de piano?
Chegou um momento em que tive que romper com ela porque ela queria que eu me mantivesse na linha do piano erudito. Eu não queria ser concertista. Eu queria apenas música popular no piano. Isso era claro desde o início. Então, aos 18 anos, um pouco antes de entrar na USP, fui a um conservatório de música popular, na Pompeia, e tive aulas com a Cecília Gorini. Ela me mostrou o que são cifras, acompanhamentos populares, como se trata a música popular, como se resolve essa transcrição no piano, baião, samba, xote, toda essa gama de ritmos brasileiros. Isso foi em 1981. Quando vi uma transcrição do “Curumim”, do César Camargo Mariano, decidi: é isso que eu gostaria de estudar. É essa forma de música que eu queira tentar aprender. A partir daí, ele sempre virou referência para mim, pela maneira de acompanhar, de preencher, de comentar pianisticamente. O tratamento que ele dá a essas coisas faz parte da minha formação. Passei pelo CLAM e pelo Espaço Musical do (Ricardo) Breim. Então, deixei o piano fora da USP e fui para o clarinete. Mas fazia coral, regência de coral, arranjo, começava a conhecer algumas coisas, experimentar. No Festival de Prados, mexíamos muito com arranjos “de hoje para amanhã”, uma forma funcional  e arranjo, que era, basicamente, o que acontecia na música barroca mineira, ou seja: “alguém importante virá amanhã à tarde e precisamos ter uma música na igreja”. O que as pessoas faziam? Compunham “de hoje para amanhã”, ensaiavam e tocavam. Lá comecei a experimentar arranjos modestos para sopros, para coro, para cordas. O maestro Adhemar (Campos Filho) ensinava instrumentação de  andas, uma das matérias do festival. Lógico, que dávamos um jeito, entrávamos pela cozinha, pela janela, sentávamos lá atrás para aprender um pouco com o maestro. Foi quando comecei a mexer com um pouco de instrumentação, textura e fraseado.

Como iniciou sua carreira de arranjador?
Aconteceu quando entrei nos Heartbreakers, em 1987. O repertório principal deles era Duke Ellington. Havia mais de 190 transcrições dos arranjos originais. E aquela formação era basicamente um grupo que se chamava Nouvelle Cuisine. Luca Raele, Maurício (Tagliari), Fernando (Carlos Fernando Nogueira), eram a cozinha do Heartbreakers. Havia o Luiz Macedo, que era o arranjador principal, o (Mário) Caribé e o Matias (Capovilla), que também faziam arranjos. Então comecei a entrar em contato com isso, não através do papel e da caneta, mas do software, diretamente do teclado, como advice de input, controlador, MIDI IN. Ali era o canal de entrada, e o computador era o papel. Quem tocava piano e clarinete era o Luca Raele. Quando iam sair para fazer o primeiro disco-solo veio o convite dele: “Jether, você é o único cara que eu conheço que pode se dar bem, porque as partituras são todas para piano e clarinete, ou seja, intercalando um e outro”. Foi quando comecei a me desligar do clarinete erudito, das sinfônicas jovens, do concerto, para entrar definitivamente na música popular. E quando começou um contato maior com o arranjo, mais por observação que por experimentação. E comecei a lidar com softwares. Até lá eu escrevia muito pouco e tinha pouca noção do que estava acontecendo. A partir do software, você começa a ter certa segurança a mais: isso funciona, isso não, com pequenas exceções. Não faço parte da geração de arranjo de papel e caneta. Queria muito ter feito, porque eles são imbatíveis. Mas faço parte da geração seguinte, que é a do computador,
do sequencer, da notação gráfica, da impressora. Não se vivia sem o computador e uma impressora. Se não tivesse isso, o arranjo não acontecia.

-118Em relação ao piano, você utiliza tanto acústicos quanto digitais. Quais as diferenças?
O som acústico é imbatível, insubstituível. Se você colocar uma orquestra sinfônica tocando com um piano digital, vai sentir falta do corpo harmônico do piano acústico, pois só ele consegue completar aquele contexto. Mas, se você colocar um instrumento desse em outro contexto, como em um show ao vivo na praia, ele vai ser um móvel enorme completamente tratado para que nada mais entre nele ou vaze para os microfones. E vai ter um timbre magrelo, ou seja, um timbre que vai sofrer todas as interferências do meio. Já no instrumento digital, você sai com o LR em cabo estéreo, completamente limpo, diretamente para a mesa. Então, dependendo do lugar onde se vai fazer o trabalho, você pode optar por um instrumento digital para manter as condições e a qualidade daquele timbre, ou por um instrumento acústico, para que as qualidades do timbre sejam realçadas. Ou seja, cada um no seu lugar. Se você optar sempre pelo acústico, corre o risco de, em certas circunstâncias, não ter a mesma qualidade. E vice-versa.

E há diferenças no toque?
Eles apresentam possibilidades diferentes, porque você está tratando com um martelo que bate em uma corda ou com um teclado que aciona um contato. É preciso descobrir qual a sensibilidade de cada um, como em uma série de pianos acústicos. No piano digital, com contato, o músico tem que encontrar qual é o range de interpretação. É diferente da resposta do acústico. Mas no digital, ele pode adicionar timbres, pads, atmosferas, que, com o acústico, seria necessário fazer em uma pós-produção ou um overdubbing de gravação. Dependendo da proposta, se obtém melhores resultados sabendo fazer a escolha certa. Um não supera o outro, porque são dois tipos de tratamento completamente distintos que, por si só, são completos no contexto em que estão: o piano acústico em uma sala tratada, ou de concerto, e o digital onde for preciso sair com LR completamente preservado.

IMG_9213Falando da Zizi, que é seu projeto de maior visibilidade, como manter uma parceria musical de 24 anos e mantê-la produtiva, inovadora?
Entendendo as necessidades dela como artista, estabelecendo comunicação e respeito mútuo. Conseguimos atingir esse ponto. Mas, principalmente, entender o que é necessário e o que não é na música. Esse movimento acaba desembocando em se tornar um sideman. Ou seja, aquele que provém. “Vamos fazer isso? Vamos fazer aquilo? Precisamos fazer uma extensão harmônica aqui, o que você acha? Vamos fazer um arranjo, pensar em uma concepção?”. Em 2001, me tornei maestro dela e assumi toda a concepção. A direção musical sempre é dela. Mas penso como realizar, como tornar palpável a concepção dela em matéria de música? Como fazer isso acontecer? Sempre fiz esse papel de realizar as ideias.

2752_site1Em quais outros projetos está envolvido?
O principal é a Orquestra de Heliópolis. Fui chamado, em 2006, como arranjador residente e, de lá até hoje, sou responsável pela concepção e os arranjos de todos os projetos com música popular e com participações de artistas populares. Por lá já passaram Ivan Lins, João Bosco, Paula Lima, a própria Zizi Possi, Moraes Moreira, Guilherme Arantes, Lenine, vários artistas. Toda vez que eles trazem o repertório deles, meu trabalho é adaptar aquilo para formação especificamente sinfônica, sem instrumentos populares. A proposta é justamente fazer que o corpo sinfônico soe para a música popular. Então, muitas vezes, figuras ritmadas brasileiras, síncopas, suingues, são um desafio para os músicos. Eles tem formação rítmica muito mais voltada para a visão europeia do instrumento. E esse desafio é muito interessante. Mas eles não se acomodam. Muitas vezes é necessário dizer:  “pare de ler, sinta o samba, o suingue… É muito interessante vê-los desligarem uma chave e ligarem outra para entenderem a música de forma diferente. Tambem faço produção de jinglese trilhas. É algo que sempre me chamou muito a atenção: musicar imagens, criar trilhas sonoras para movimento e para dança. Não sou grande improvisador e não gosto de improvisar. Já tentei ser jazzista, mas percebi que não é a minha praia. Minha
praia é fazer música para alguma coisa, não música por música, para mim. Tanto que até hoje não me interessei em fazer projetos autorais. Gosto mais de fazer música para a específica necessidade que se apresenta, ou seja, torná-la útil.

artworks-000032363187-4ewusp-originalJether Garotti Jr.
Instrumento preferido: gostaria de aprender a tocar bateria
Instrumento inesquecível: a orquestra sinfônica
Influências: Herbie Hancock, Cesar Camargo Mariano, Egberto Gismonti, Gilson Peranzzetta, Benny Goodman, Marcus Miller
Disco preferido: As Falls Wichita, So Falls Wichita Falls, de Pat Metheny, e Saudades do Brasil, de Naná Vasconcelos
Música preferida: “Close To Home”, de Lyle Mays.
Trabalho inesquecível: Valsa Brasileira, com Zizi Possi
Sonho de consumo: um HD superpequeno em que coubessem 74 mil terabytes de sons
Descoberta: fazer música para o outro, não para você mesmo
O que anda ouvindo: de tudo
O que anda lendo: tratados de orquestração
Ídolo: Professora Sophia Helena Freitas Guimarães de Oliveira

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